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A música que fez de Kamasi Washington um colosso do jazz


Se você perguntar para qualquer estranho neste café da cidade Culver na Califórnia para olhar ao redor e apontar para o homem que é constantemente chamado de “o futuro do jazz”, Kamasi Washington seria o número um na escolha. Ele parece com Sun Ra renascido como um atacante do futebol americano (NFL): grande, mas gentil, capaz de uma gigante ira cósmica e uma calma meditativa. Seu vigoroso corpo está envolvido em uma túnica preta, medalhões pendurados em seu pescoço, e um kipá de madeira caleidoscópica protege seu volumoso cabelo grosso.

O nativo de Inglewood (cidade da Califórnia) fala suavemente e carrega um grande bastão. Isso não é uma figura de linguagem, mas um fato. Sua voz é serena assim como o seu sax tenor é uma catarata que ruge. Washington raramente deixa o seu bairro sem o seu bastão de madeira ornamentada em formato de tubarão. Combinando com perfeição com seu arranjo de anéis de pantera na sua mão direita – um deles bate acidentalmente enquanto nos cumprimentamos.

Se você prefere chamar de presença ou aura, existe algo sobre Washington que sugere que esse não é o seu primeiro ciclo no Samsara. No show, seu saxofone soa como um vale extra-sensorial multidimensional. O lendário baixista de jazz fusion Stanley Clarke o chama de herdeiro do mestre astral, Pharoah Sanders. Sua música é um bálsamo de cura psicodélica em um momento de caos turvo.

“Eu não posso me preocupar sobre guerra nuclear mais do que eu me preocupo com invasão alienígena, ” Washington diz com um pouco de graça. “Todos os dias nós estamos aqui com a oportunidade de fazer o que nós podemos para um mundo mais justo, para ajudar alguém próximo ou longe de nós, para não ficarmos tão presos naquilo que não podemos fazer, e se lembrar o que podemos.”

A narrativa por de trás do álbum de 2015 do antigo aluno de etnomusicologia da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), “The Epic”, se revela para ele numa recorrente series de sonhos junguianos. Lançado pelo selo Brainfeeder do rapper Flying Lotus, o disco vem do exoesqueleto do seu brilhante trabalho no vencedor do Grammy “To Pimp a Butterfly” de Kendrick Lamar.

O sucesso entre os críticos e comercial subsequente catapultou Washington em uma posição inconfortável de ser o próximo “salvador do jazz” – um superlativo hiperbólico que ele gentilmente rejeitou e implicitamente viveu. A aclamação ressalta uma década de shows, sessões de estúdio e lendários encontros com sua turma da costa oeste Get Down por toda a Los Angeles. Washington aprendeu com alguns dos melhores: o lendário trompetista Gerald Wilson, Snoop Dogg, Raphael Saadiq, o venerado educador de Los Angeles Reggie Andrews, e seu pai, Rickey, um celebrado músico em seu próprio direito.

Seu último trabalho, “Harmony of Difference”, começou originalmente como uma peça comissionada para a bienal de 2017 do museu de artes Whitney (Nova Iorque). Aqui Washington tenta aperfeiçoar uma técnica musical conhecida como “counterpoint”, que ele define como “a arte de equilibrar similaridade e diferença para criar harmonia entre melodias separadas. ” Entre outros, conta com Thundercat, Terrace Martin, e toda Get Down.

“Eu fico pensando sobre como é irônico pessoas que moram em lugares com diversidade tendem a amá-lo – e pessoas que não vivem particularmente em lugares com diversidade tendem a serem aqueles que atacam isso, ” diz Washington. “De certa forma, é similar com a música, que é essencialmente a arte de reunir as coisas. Você está combinando diferentes cores, ideias, e formatos para fazer com que eles fiquem mais bonitos do que individualmente. São doze notas e uma escala, mas quanto melhor você for em combinar essas notas é que faz de você um bom músico. ”

Nessa pegada, essas são algumas das melhores combinações do passado de Washington que lhe ajudou a definir o presente.

Aos 5 anos - Henry Mancini: The Pink Panther Soundtrack



Meu pai tocou este disco primeiro para mim, e eu lembro dele dizer “Isso é jazz. ” Era a coisa mais legal para mim. Eu escutava o meu pai praticar o dia inteiro e ir para seus ensaios e encontrar os filhos de seus amigos. Foi lá que eu conheci o Roland (Bruner Jr.) e Stephen (Bruner, conhecido como Thundercat). Música estava sempre acontecendo. Quando meu pai não estava praticando, ele estava escutando música. Ele tinha uma coleção de jazz incrível, e minha mãe tinha coisas como Chaka Khan para balancear.



Aos 10 anos - N.W.A.: Straight Outta Compton



Eu secretamente gostava de N.W.A. Estamos falando de 1991, a era das mixtapes, e eu comprei esse toca fitas de uma loja de discos no cruzamento da Manchester com a Western. Após os meus pais se divorciarem, minha mãe estava vivendo no cruzamento da rua 74 com a Van Ness em South Central, e meu pai em Inglewood.

Eu tinha essa ideia idealizadora de como ia ser legal e incrível ser um gangster. N.W.A. com certeza perpetuou isso, mas também era bem mais do que isso. Deu uma voz para o que estava acontecendo e o som era fantástico. Explicava como era viver por aqui. Música é como uma expressão, e eles estavam realmente expressando como eles achavam que o seu bairro era.

Por volta da mesma época, esse programa chamado Ujima veio até a minha escola e nos reeducou. Eles explicaram que esse sentimento que nós tínhamos de sermos criminosos e gângsteres, ou de odiar um ao outro, era algo sistemático que estava sendo deliberadamente empurrado para a gente se destruir. Nós tínhamos apenas dez anos de idade, mas nós entendemos, e mudou completamente como a gente pensava e basicamente tirou de nós essa ideia de ser um criminoso, no qual a sociedade colocava pressão em nós para que fossemos.

Aos 15 anos - John Coltrane: Transition



Desde que eu era um bebê, meu pai tentava me fazer gostar desse disco, porém por alguma razão eu nunca entendi ele. Naquele ponto, eu estava na minha própria jornada – um período de rebeldia em que eu estava buscando minhas próprias coisas.

Mas um dia eu peguei um ônibus para a Tower Records (loja de discos) em Hollywood, comprei o disco, coloquei no meu pequeno discman na volta para casa e aquilo me deixou boquiaberto. Eu estava no ônibus como se eu estive realmente no show. Esse foi um dos primeiros álbuns no qual eu fiquei viciado. Eu escutava todos os dias. Era mais ou menos a única coisa que eu escutei nos próximos cinco anos.



Aos 20 anos - Igor Stravinsky: The Rite of Spring



Esse foi no meu primeiro ano de faculdade. Eu estava tocando com o Snoop naquela época, perdendo cinco semanas de aula por trimestre – eu me tornei muito bom em negociar com os meus professores. Meus gostos ficaram bem amplos, mas foi aí que eu comecei a estudar o outro lado da música. Eu não estava mais focando apenas no jazz.

Eu estava estudando bastante Stravinsky. Eu me lembro de ler sobre como ele causou uma confusão na estreia de “The Rite of Spring. ” Essa foi a primeira vez no qual eu comecei a associar essa ideia comigo mesmo. Eu gostava de pessoas que se rebelavam antes disso, mas por alguma razão eu me identifiquei com Stravinsky. Eu costumava realmente querer tocar a minha própria versão de “The Rite of Spring. ”

Aos 25 anos - Fela Kuti & Africa 70: Expensive Shit



Em 2006 estávamos todos tocando em uma banda chamada Young Jazz Giants, porém Thundercat também estava tocando com o Suicidal Tendencies, o Ronald (Bruner Jr.) com Kenny Garrett, Cameron (Graves) com o Wicked Wisdom, e eu estava com Snoop e a Lauryn Hill. Eu estava com vários projetos. Toda semana eu estava com alguém fazendo algo, mas não minhas próprias coisas. Então nós começamos a tocar na 5th Street Dick’s e foi incrível, pois podíamos tocar em estádios para 60 mil pessoas e sermos felizes quando chegássemos em casa num show em que realmente conseguíamos atingir as pessoas na plateia. Mais tarde, se tornou em algo real.

Isso ocorreu quando eu estava imerso em música africana. Fela Kuti me impressionou bastante. O jeito que ele toca é pouco ortodoxo, mas eu aprendi a apreciar. Foi a Lauryn Hill que me mostrou Mulatu Astatke e dos discos da Etiópia, e eu comecei a tocar com toda essa galera etíope, que tocam com esse grande vibrato e usam apenas uma escala na música toda. Eu tive que aprender um estilo de música e me sentir confortável em não tentar utilizar tudo o que eu estava acostumado; eu apenas abracei. As pessoas começaram a falar comigo em Amárico pois eles achavam que eu era etíope. Eles diziam: “Do jeito que você toca, só pode ser etíope. ”



Aos 30 anos - Thundercat: The Golden Age of Apocalypse



Estávamos tão ocupados tocando para outras pessoas que estávamos começando a nos conformar com o passar do tempo de que nossa própria música era apenas uma nota de rodapé. Mas de repente o Thundercat surgiu – o mais novo de nós – e fez o seu próprio lance. Isso nos inspirou. Ficamos muito orgulhosos dele. Não sei como explicar. Por anos conversamos em lançar a nossa própria música, mas ninguém nunca fez isso. Então quando ele finalizou o seu disco, pareceu que ele abriu uma porta que sempre esteve fechada.

Aos 35 anos - Kendrick Lamar: To Pimp a Butterfly



Aquele disco mudou a música e ainda estamos vendo o efeito disso. Foi além do jazz; significou que música intelectualmente estimulante não precisa ser underground. Pode ser popular. Foi além de todo o resto também: harmonicamente, em termos de instrumentação, estruturalmente, liricamente. Eu senti que as expectativas que as pessoas tinham delas mesmas mudou. Não mudou apenas a música. Mudou a plateia.

Eu cheguei mais tarde durante o processo e, desde o primeiro dia, eu sabia que esse era um disco clássico, mundialmente transformador. Kendrick não apenas trouxe os melhores, mas ele permitiu que todos dessem o seu melhor. Isso é algo raro.

Para algumas pessoas as coisas vêm naturalmente e outras trabalham para isso. Kendrick é os dois. Ele pode instantaneamente escrever uma grande música, mas depois ele se dedica o tempo todo para que aquilo fique perfeito. Geralmente você consegue um ou o outro. Ele ficava sentado olhando eu escrever as partes para as cordas. Muito pessoas não se importariam. Elas ficariam, “Me mostre quando estiver pronto. ” Mas ele sempre estava no estúdio dando ideias, e seus instintos são incríveis. Ele contratava pessoas para usarem o estilo que elas quisessem e assim ele pegava todo esse talento do pote, com sua própria genialidade, para moldar o álbum perfeito. Isso é um tipo de humildade – não humildade para qualquer propósito filosófico, mas uma verdadeira humildade.

*Tradução da matéria escrita por Jeff Weiss e publicada no portal Pitchfork em 3 de outubro de 2017

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