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Hermeto Pascoal, o louco albino brasileiro




David Block se aventura no excêntrico mundo musical do intuitivo multi-instrumentista que se tornou uma lenda do jazz mundial quando tocou no disco de 1970 Live-Evil de Miles Davis

Hermeto Pascoal é um enigma. Ele cria música de qualquer objeto que ele consegue colocar as mãos, de sua barba até seu garfo e faca. Ele também é legalmente cego. “Eu sei que ele consegue reconhecer uma pessoa de uma distância de 2 metros”, disse Bill Smith, presidente/dono da agência de talentos Riot Artists, que também trabalhou com ele nos últimos doze anos.

         Smith e Jovino Santos Neto, que foi parte da banda de Hermeto entre os anos de 1977 e 1992, conheceram o músico e viram facetas dele que o fã comum pode não conhecer. Ambos foram bondosos o suficiente em compartilhar suas experiências trabalhando com Pascoal para esse artigo.

         Hermeto Pascoal nasceu no dia 22 de junho de 1936 na pequena cidade agrícola de Lagoa da Canoa, localizada na região nordeste de Alagoas, Brasil. Albino de nascença, Pascoal era incrivelmente míope. Ele abandonou a escola na quarta série, pois a unidade que ele frequentava não tinha acomodações especiais para ele ficar em pé de igualdade com os outros alunos. De qualquer maneira, muito não foi perdido. José de Costa Pascoal, seu pai, era músico e ensinou seu filho como tocar acordeão.

         Os pais de Hermeto tinham uma fazenda, dessa forma ele conseguiu descobrir como incorporar o som dos animais em sua música. Ele também aprendeu sozinho como tocar piano e flauta.

         Uma das forças de Pascoal é de utilizar o som de qualquer objeto e incorporar em sua música. Smith declarou que o músico pode estar em um restaurante ou sentado do lado de fora e pegaria os objetos ao seu alcance para ver os sons que poderia tirar deles.

         “Ele molhou sua barba e arrancou com o microfone próximo”, disse Smith. “Ele geralmente toca uma chaleira cheia de água que faz sons incomuns. Nós podemos estar em um restaurante e ele vai bater no copo com seus talheres. Ele compõe incessantemente quando está em turnê ou em casa. Não importa se ele está em Tóquio, Paris ou Nova Iorque. ” Smith disse que quando Pascoal viaja para essa ou outras cidades, ele não visita ou sente o local. “Ele passa o dia inteiro no hotel compondo. Ele tem pessoas para desenhar as notas para ele e então ele coloca as anotações nelas”.

         Compor música de qualquer coisa sempre foi a marca registrada de Hermeto, mesmo antes dele tocar profissionalmente.

         Pascoal se mudou para o Rio de Janeiro no começo dos anos sessenta, quando ele começou a gravar com alguns músicos da nova geração, como o Quarteto Novo. Ele então foi tocar com estrelas como Miles Davis, aparecendo no disco de Davis “Live-Evil” de 1970.

         Apesar de ser legalmente cego, Pascoal uma vez tentou lutar boxe com Miles. O resultado disso foi Davis se referindo a ele como albino louco. Existe um vídeo no youtube com mais informações sobre essa lendária luta.

         Quando Neto conheceu Pascoal pela primeira vez em novembro de 1977, ele não tinha ideia de que ia tocar com ele pelos próximos quinze anos. Na época, Neto não era um profissional. Enquanto morava no Canadá, Neto formou uma banda, mas eles eram estritamente amadores.

         Neto estava trabalhando no seu mestrado em ecologia no Instituto de Pesquisas da Amazônia. Ele tinha passado os últimos anos estudando biologia no Canadá e estava em casa no Brasil temporariamente para visitar amigos e a família.

         “Quando eu fui para casa, eu descobri que Hermeto tinha comprado uma casa perto de onde os meus pais moravam”, conta Neto. “Eu queria apenas conhecer ele e dizer ‘Sou grande fã de você’. Eu escutei sua música; eu estava em alguns de seus shows. Eu tinha que conhecer ele”.

         Neto reuniu forças e coragem para tocar a campainha da casa de Pascoal. Para sua surpresa, sua mulher abriu a porta.

         Neto mais tarde relembraria esse momento no seu artigo, “Tocando a campainha na casa de Hermeto Pascoal. ”

         Ele escreveu: “E-e-e-essa é a casa do Hermeto? Eu sou músico e gostaria muito de conhecer ele”. Ela me levou para a sala de estar e eu fiquei sozinho no sofá enquanto o Hermeto Pascoal, sem camisa e de bermuda, tocava o piano com fones de ouvido e fechando os olhos com força”. A história original pode ser lida aqui.

         “Eu disse para o Hermeto que eu tinha uma banda no Canadá e mostrei para ele minha fita, então ele me mostrou seu último disco “Slaves Mass” (1977). ” Até hoje, o disco é um dos mais vendidos da carreira de Pascoal.

         “Hermeto então me perguntou se eu conseguia ler partituras”, disse Neto. “Eu disse sim. Era mentira. Ele sacou essa partitura, me fez ler e eu estraguei tudo”.

         Pego mentindo, ele esperou ser mandado para fora da casa de Pascoal. No entanto... “ ele pediu se eu podia tocar com ele em um show naquela semana”.

         “Eu não podia acreditar”, conta Neto. “Hermeto tinha esse incrível conjunto de antenas. Quando ele escuta alguém tocar, ele sempre pode dizer o que é possível. Ele disse que uma pessoa pode tocar se dado o local correto e estimulo, e a orientação correta”.

         Após a sua performance inicial com Pascoal, Neto decidiu renunciar seus estudos. Ele passou os próximos quinze anos na banda de Hermeto.

         De acordo com Neto, o músico passou anos compondo algumas partes e escrevendo outras de forma espontânea. Uma dessas ocasiões espontâneas ocorreu em 1979 na cidade de Montreux, Suíça.

         “Hermeto pegou uma lista qualquer do chão e desse jeito ele escreveu uma peça de música antes de entrar no palco”, disse Neto. “Ele tocou ela no palco”.

         Segundo Smith, Hermeto não capitalizou comercialmente suas forças.

         “Ele produz e toca o que ele chama de música universal”, conta Smith. “Ele é um multi-instrumentista – ele toca muito bem piano. Você pode dar para ele qualquer instrumento que ele consegue tocar. Eu já vi ele no palco tocar com dois patos de borracha”. Com 82 anos de idade, Pascoal continua se apresentando ao vivo, como sua página no Facebook prova.

         Neto conclui que ele quer que as pessoas saibam que Hermeto Pascoal tem vários lados. “Ele é conhecido por tocar com um porco no palco, batendo no bule de chá, e algumas vezes sendo bobo, mas existe um lado sério de Hermeto, como sua profundidade de composição”, declara Neto. “Música é uma parte dele”.
        
*tradução da matéria publicada no portal inglês “Jazz Journal” em 27 de fevereiro de 2019.

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