Pular para o conteúdo principal

Em autobiografia, Michael Balzary conta como se transformou em Flea




Michael Peter Balzary nasceu no dia 16 de outubro de 1962 em Melbourne, Austrália. Por conta da carreira do pai, o jovem Michael se mudou com a família para os Estados Unidos no final dos anos sessenta. Com o divórcio dos pais, se mudou para Los Angeles com a irmã, a mãe e o padrasto, Walter, um músico de jazz. Foi na ensolarada Califórnia que um moleque mirrado, estranho e com sotaque diferente, se tornou um dos principais baixistas da história do rock e fundador de uma das bandas mais influentes dos anos oitenta e noventa.

O Red Hot Chili Peppers, a banda desse tal de Michael, já vendeu milhões de discos desde a sua estreia com o álbum homônimo de 1984 e, mesmo com as mudanças na indústria da música, continuam lotando estádios em todo o mundo. Mais conhecido por todos como Flea, o australiano é um dos membros fundadores do grupo e uma das principais forças do conjunto. Seu estilo único de tocar, influenciado por diversos estilos, do funk do Parliament ao punk do Germs, e o modo aloprado como ele se comporta no palco, são algumas das características que fazem da banda tão amada até os dias atuais.

Mas dessa vez Flea não é notícia por conta de suas linhas de baixo, mas sim pelas linhas da sua excelente autobiografia “Acid for the children”, na qual conta a trajetória de sua vida até o primeiro show dos Chili Peppers em 1983.



Com uma escrita honesta e muitas vezes excêntrica, o músico narra em quase 400 páginas uma sequência de eventos que resultaram naquele show, no Grandia Room, em Hollywood, no qual o grupo ainda se chamava Tony Flow and the Miraculously Majestic Masters of Mayhem. Em um primeiro momento pode soar um pouco decepcionante. Uma das principais figuras da música só falando de um período de sua vida, no qual para muitos fãs não é o mais relevante. Porém, para entender o ser humano Michael, é muito importante conhecer as histórias que moldaram o pequeno Balzary no homem que ele é atualmente.

A obra é composta por diversos capítulos, a maioria de uma, duas, ou três páginas, e com títulos muito peculiares. É incrível como ele consegue descrever com uma riqueza de detalhes pessoas que fizeram parte da sua infância – a maioria das pessoas muitas vezes não conseguem lembrar o que tomaram de café da manhã. Por exemplo, em “Riot Girl”, ele conta a respeito de uma senhora na qual ministrava aulas de trompete de forma vívida. “A senhora Sager tinha 65 anos, uma mulher pálida e rotunda com óculos grossos e roupas de poliéster estampadas engraçadas, com cores vivas e coordenadas. Uma grande figura, em seu pequeno e escuro apartamento, com pilhas desorganizadas de partituras, trompetes e outros equipamentos musicais ocupando todo o espaço que não era uma cadeira ou um suporte musical”.

O livro poderia muito bem ter como subtítulo “Sinceridade”, por conta das inúmeras vezes em que é verdadeiro e aberto com o leitor. Flea escreve que durante toda a sua infância sempre se sentiu um estranho, deslocado do restante de seus pares, porém nas ruas de Los Angeles ele encontrou almas também desajustadas. Artistas, músicos, poetas, pintores, ladrões de carteira, viciados, traficantes, todos esses personagens fizeram com que se sentisse parte de alguma coisa. Nesse cenário, o destino colocou duas importantes figuras em sua vida, Hillel Slovak e Anthony Kiedis.

Suas palavras transbordam emoção quando ele fala com carinho de Slovak. “Zilhões de poderosas memórias viajam dentro de mi, eu estou perdido em uma grossa floresta de emoções quando eu escrevo seu nome. Eu estou incapacitado para direcionar a tinta desta caneta para fazer as marcas que descrevam o profundo e complicado jovem que ele era”, escreve no capítulo “A Slovakian Influence”. O guitarrista viria a falecer com apenas 26 anos, após uma overdose de heroína, algo no qual deixaria profundas marcas no jovem Michael. “Pelo tempo que eu viver, eu saberei que falhei. Por favor me perdoe, Hillel, eu não sabia, eu estava cego pelas únicas coisas que me davam visão, e poluído com arrogância e ambição. Se apenas. Se apenas eu soubesse o que o amor era. ”

Já quando o assunto é Kiedis, a história é um pouco mais complicada. “Eu começo a escrever sobre o meu relacionamento com Anthony, eu tenho que fazer uma pausa e me afastar da minha mesa [...] Eu estou com medo de envenenar as coisas entre nós, ou assustar a mágica disso ao tentar entender, mas que seja. Aí vou eu”, declara durante o capítulo “Animal Nature”.



Juntos desde os tempos que Flea tocava trompete na Fair fax HighSchool, os dois são os únicos membros originais do Red Hot Chili Peppers até hoje. Portanto, é compreensível que em décadas de amizade e companheirismo, amor e magoas foram compartilhadas. Mas o jeito amoroso, quase transcendental com que ele fala de seu amigo, é lindo e supera qualquer ressentimento que possa existir entre os dois. “Juntos nessa jornada, a energia que nos manteve aqui é maior do que podemos entender. Não importa o desconforto, não há razão em lutar contra. Esse é o nosso tapete mágico voador e fardo para carregar. Yin e Yang, luz e escuridão, começo e fim. Em perfeição. Eu tive que aprender a ter fé, honestidade e perdão para sobreviver, até que o universo decida mudar tudo isso, essa é as nossas vidas. Não é uma questão de carreira, dinheiro, amor ou até história. Não existem questões e explicações. É o que a natureza fez. ”

O livro, como a música de John Coltrane, é uma grande viagem cósmica e espiritual. Recheada de amor, natureza, descobrimentos, lágrimas, arte, livros, cinema, drogas, mortes, violência, enfim, de boas histórias, “Acid for the children” é provavelmente um dos livros mais legais lançados neste ano. O que resta para os fãs e leitores é esperar que o senhor Balzary se empolgue e escreva o próximo volume, descrevendo com a mesma riqueza de detalhes os doidos anos dedilhando o baixo do Red Hot Chili Peppers. Que tal, Flea?



Os trechos citados na matéria são uma tradução livre do autor.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Muito Sexo, muitas drogas e muito, mas muito Rock 'n' Roll na Netflix

Em maio de 2001 foi lançada uma das melhores e mais aguardadas autobiografias sobre uma banda de rock. Em mais de 400 páginas, “The Dirt: Confessions of the World's Most Notorious Rock Band” conta, através da visão de Tommy Lee, Mick Mars, Vince Neil e Nikki Sixx, a história de uma das bandas mais insanas dos anos oitenta, o Mötley Crüe. O sexo, as drogas, as brigas, as prisões, o sucesso, a decadência, tudo está nessa obra que é extremamente bem-acabada graficamente.     O papo para tornar todas essas páginas em filme começou em 2006, quando a Paramount e a MTV adquiriram os direitos para a adaptação nas telonas. Porém as coisas enfriaram e, com o fim da banda (será?!) em 2015, os rumores de que a história da banda poderia de uma vez por todas ser lançada voltou à tona. Com o sucesso no ano passado de “Bohemian Rhapsody”, o filme que conta a vida do Queen, a plataforma digital de streaming de filmes e séries Netflix lançou no dia 22 de março “The Dirt”, dirigido por

Como Henry Rollins entrou para o Black Flag

  O trecho abaixo foi retirado do livro “Get in the Van” escrito por Henry Rollins e lançado em 1994. Como o livro não tem uma tradução para o português, as linhas abaixo foram traduzidas de forma livre por mim. Espero que gostem.   Primavera (1981): Eu estava vivendo em um apartamento em Arlington, Virginia, bem perto de Washington, DC. Eu trabalhava numa sorveteria e caminhava até o meu trabalho todos os dias. Eu era o gerente da loja e trabalhava lá entre 40 e 60 horas por semana fazendo os depósitos, contratando, despedindo, fazendo inventário, servindo sorvete, etc. Eu estava numa banda naquela época. Nada muito musical. Quatro de nós com um equipamento de merda, mas a gente se divertia tocando e ensaiando. Um cara chamado Mitch Parker deu para mim e para o meu amigo Ian MacKaye uma cópia do EP do Black Flag Nervous Breakdown . Nós tocámos ele o tempo todo. Era pesado. A arte da capa dizia tudo. Um cara com as costas para a parede erguendo os punhos. De frente para ele ou

Dicas de quarentena #147: Lô Borges tocando disco do tênis na íntegra!

  Lô Borges foi um dos principais nomes que surgiram por conta do disco Clube da Esquina de 1972. Seu autointitulado álbum de estreia, mais conhecido como “disco de tênis”, é considerado por muitos críticos e fãs com um dos grandes álbuns da história da nossa música. Em 2018, Lô reuniu uma banda de primeira para recriar esse trabalho ao vivo. Abaixo você confere o show que rolou no icônico Circo Voador e que gerou o DVD “Tênis + Clube - Ao Vivo no Circo Voador":