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O sangue frio de Truman Capote




Truman Capote é um dos maiores escritores do século XX. Nascido em 1924 na cidade de Nova Orleans, Estados Unidos, começou sua carreira literária com contos publicados em algumas revistas americanas nos anos quarenta, incluindo a prestigiada The New Yorker. Porém, apenas em 1958 ele lançou seu primeiro romance, “Breakfast at Tiffany's” (Bonequinha de Luxo).

Sempre atrás de novos desafios, Capote ficou intrigado ao ler uma notícia no jornal New York Times a respeito do assassinato de uma família inteira na cidade de Holcomb, Estado do Kansas. Não imaginava ele na época que essa pequena notícia seria o ponta pé inicial para um dos melhores livros de todos os tempos e que o escritor seria um dos precursores do “New Journalism”, ou romance não-ficcional, em que a narrativa jornalística se mistura com a literária.

“A Sangue Frio” foi primeiro lançado numa série de capítulos na revista The New Yorker em 1965. Com o sucesso e recorde de vendas da revista, a obra saiu em livro alguns meses depois, mais exatamente em janeiro do ano seguinte (1966).

Em cerca de 400 páginas, Capote conta como dois homens, Richard Hickock e Perry Smith, assassinaram os membros da família Clutter, incluindo o pai (Herb Clutter), a mãe (Bonnie Clutter), e os filhos mais novos (Kenyon e Nancy), além de como a polícia conseguiu desvendar essa macabra chacina. No processo de criação do livro, Truman entrevistou diversos familiares das vítimas e dos assassinos, vizinhos dos Clutter, recolheu diversos documentos, cartas e diários. O escritor também assistiu ao enforcamento dos dois assassinos (!!!).



Agora, caro leitor, que eu já te contei do que se trata “A Sangue Frio” e de como Truman Capote escreveu essa belíssima obra, eu quero te falar quais são os motivos desse livro continuar tão especial, mesmo mais de cinquenta anos após seu lançamento.

Sim, eu admito, o enredo é macabro, principalmente nos dias atuais em que programas de televisão, como o abominável “Brasil Urgente” da TV Bandeirantes, prestam um desserviço ao bom jornalismo vomitando por horas reportagens porcas sobre o lado mais perverso do ser humano. Mas, Capote ministra aqui uma aula de como prender o leitor. De como escrever sobre um tema tão delicado e pesado.

O jeito com que ele te faz se importar com os personagens é algo ímpar. Para você ter um exemplo, ele passa o primeiro capítulo inteiro contando as últimas horas da família Clutter. Ele te torna íntimo deles. Íntimo dos sonhos e inseguranças da menina Nancy. Íntimo da mente perturbada, porém doce da Senhora Clutter. Íntimo das aventuras juvenis do menino Kenyon. Íntimo do respeitado Senhor Clutter. Enfim, ele torna o leitor próximo deles. Te induz a criar afeto por eles. Amor por essa família.

Capote também constrói o livro em volta dos assassinos. Assim como ele faz com as vítimas, ele transporta você para a vida e mente de Hickock e Smith. Também lhe torna íntimo desses cruéis personagens nas horas que antecederam o crime e nas posteriores, claro.



É incrível como o escritor brinca com as emoções de seus leitores. Em uma página você é consumido por um ódio mortal desses animais sem escrúpulos, achando que o enforcamento foi a única pena justa para eles. Já na outra página, você se pega questionando com uma dose de compaixão se talvez essas duas pessoas, esses dois seres humanos como nós, também não são vítimas. Não vítimas como a família Clutter, mas vítimas de várias decisões erradas que eles tomaram durante toda a vida e no qual levaram ao assassinato de quatro pessoas no Kansas.

Isso só é possível pois ele conta a história na terceira pessoa. Ele se distancia de seus personagens. Em momento nenhum ele tenta fazer juízo de valor. Pensar por você. Capote quer que você, caro leitor, por iniciativa própria ame ou/e odeie eles.

Resumindo, um livro espetacular.

Depois do sucesso da obra, Truman teria sido acusado por vários personagens de que eles não teriam dito exatamente o que estaria escrito em “A Sangue Frio”. O escritor se gabava por não fazer anotações e usar um gravador, já que isso inibia seus entrevistados e, se gabando, ele tinha a capacidade de memorizar tudo o que eles diziam. Outro fato que foi levantado na época, e esse gera muito debate no mundo jornalístico até hoje, é o papel do escritor/jornalista.

Capote levantou um vasto material sobre o caso, incluindo análises de diversos médicos a respeito da sanidade mental dos assassinos. Dessa maneira, muitos alegaram de que ele poderia ter ajudado no caso da defesa, no qual alegava que ambos os assassinos sofriam de problemas mentais, livrando Hickock e Smith da pena de morte. Porém, na visão do escritor, o seu papel era apenas de documentar os fatos e não interferir nos desdobramentos.

Polêmicas e discussões à parte, “A Sangue Frio” é um clássico da literatura mundial e uma aula para quem está cursando jornalismo. Leitura obrigatória para qualquer pessoa que goste de um livro envolvente.



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