Quantas
vezes já não escutamos que “esporte e política não devem se misturar?” Nos
últimos tempos, principalmente, isso parece ser recorrente. Casos recentes são
exemplos desse tipo de pensamento. Em 2018 o apresentador global Tiago Leifert
escreveu um artigo para o site da revista QG afirmando que “quando política e
esporte se misturam dá ruim,” por conta da manifestação política do jogador da
NFL Colin Kaepernick ao se ajoelhar durante a execução do hino nacional norte
americano como forma de protesto ao modo racista que a polícia dos Estados
Unidos historicamente trata os afrodescendentes por lá.
Já nesse
ano, outro caso envolveu mais um global e amigo de Leifert. O ex-jogador de
futebol e hoje comentarista Caio Ribeiro fez duras críticas ao dirigente do São
Paulo Futebol Clube Raí por conta das suas opiniões ao modo como o atual
presidente da República tem se comportado no combate ao novo corona vírus. “Eu
não gostei do discurso do Raí porque ele falou muito pouco de esporte e falou
muito sobre política (...) Eu acho que ele tem que falar de esporte,” disse
Caio.
Os
dois episódios mostram que o esporte, por um lado, está muito longe de ser
apenas um meio de entretenimento e uma válvula de escape para que a população
não reflita a respeito dos problemas sociais que afligem suas comunidades. No
livro do espanhol Quique Peinado, “Futebol á Esquerda”, o jornalista narra histórias
deliciosas de jogadores de esquerda que foram também importantes fora das
quatro linhas.
Lançado
em 2013, Quique fala de um tipo de futebol diferente. Um futebol cheio de
paixão e carregado de críticas sociais e políticas. Histórias de craques que
não se importavam apenas em proporcionar belos gols, mas que batalharam fora
dos gramados contra o sistema vigente, por melhores condições para a profissão
e suas comunidades.
Já de
cara, na capa, temos a figura de um dos personagens do livro, o Doutor
Sócrates. Uma parte do livro é dedicada aos brasileiros, como o atacante
Reinaldo do Atlético de Minas, que comemorava seus gols com o braço levantado e
o punho fechado, e Afonsinho, que se tornou o primeiro jogador de futebol a ter
posse do próprio passe, muito antes da implementação da Lei Pelé.
Quando
ele fala do Magro e da Democracia Corintiana, o autor não poupa palavras para
explicar a importância do movimento no país e no futebol brasileiro durante o
fim do regime militar. “Com os jogadores assumindo amplas parcelas do poder e
os ideais democráticos como bandeira, a Democracia Corintiana (...) transformou
o clube em um partido político itinerante. Seu funcionamento interno era tão
simples quanto revolucionário: tudo era decidido em assembleias nas quais
votavam desde a estrela da equipe até o último roupeiro, e todos os votos
tinham exatamente o mesmo valor (...) O lema era ‘liberdade com
responsabilidade’. E todos a exerciam, cada um à sua maneira.”
Porém,
talvez a história mais carregada de sentimento seja a do atacante italiano
Cristiano Lucarelli. Assumidamente comunista e apaixonado pelo Livorno, o cara
foi um dos fundadores da torcida organizada Brigadas Autônomas Livornesas. Em
1997, após fazer um gol pela seleção sub-21 da Itália no Armando Picchi
(estádio do Livorno), Lucarelli comemorou mostrando a camiseta que tinha por
debaixo da azul italiana, uma branca com a foto de Che Guevara e os dizeres “O
Livorno é uma fé e os ultras seus profetas.” Mas sua maior prova de amor ainda
estava por se concretizar.
Emprestado
pelo Torino ao seu clube de coração na temporada 2003-04, o atacante conseguiu
cumprir a missão de levar o time da série B para a elite do futebol italiano.
“Lucarelli (...) marca o gol definitivo, tira a camisa, coloca-a no chão e faz amor
com ela. Quando a equipe volta a Livorno, às quatro da manhã, 10 mil
torcedores os aguardam no campo (...) Sua alegria não é como a dos demais: para
ele é um grande triunfo esportivo, mas, no final das contas, ele já jogou na
Série A. Simplesmente acabava de conseguir algo muito maior: levar o time de
seus sonhos à Primeira Divisão, coisa que em sua história de torcedor sofredor
jamais havia visto.”
O
livro também fala sobre as recentes ditaduras militares na América do Sul. Em
1978, no auge do regime argentino, comandado pelo general Jorge Rafael Videla
Redondo, o país foi sede da Copa do Mundo da FIFA. Dezesseis países
participaram, porém enquanto o mundial rolava, diversos opositores do regime
desapareciam. Estima-se que 30 mil pessoas tenham sido mortas durante esse
período. A seleção da casa, liderada pelo cabeludo atacante Mario Kempes, se
sagrou campeã, batendo a Holanda por 3x1. Apesar do título, desde então os
jogadores sempre foram questionados se realmente sabiam o que estava
acontecendo no país.
Em
uma das passagens do livro, Quique narra o encontro de um ex-jogador daquela
seleção, Ricardo Ricky Villa, e Tati Almeida, mãe de um jovem
desaparecido. Segundo Villa, “hoje renego aqueles tempos, gostaria que
pudéssemos ter tido essa conversa naquele momento e que tivéssemos tido
personalidade para denunciar o que acontecia.” Ele segue dizendo que “com o
tempo, percebi que aquela foi uma fase da minha vida que vivi enganado. Eu era
apenas um jogador de futebol que queria ser campeão do mundo.” Durante a
conversa entre os dois, um dos questionamentos de Tati para Ricky talvez
seja o mais interessante e sintetize com muita precisão que esporte e política devem
se misturar: “os seus filhos não perguntavam o que você fazia naquela época?”
Além
disso, temos histórias sobre Paolo Sollier, o jogador que não dava autógrafos, Iker
Sarriegi, que ficou conhecido como o “jogador do ETA”, sobre o time sueco IFK
Gotemburgo, que praticou durante os anos oitenta “um autêntico futebol de
esquerda”, entre diversas outras.
Em
mais de 300 páginas, “Futebol à Esquerda” não trata apenas de indivíduos
assumidamente de esquerda, mas de esportistas que quebraram o paradigma de que
jogador de futebol tem que apenas jogar bola e nada mais. Assim como Lucarelli,
que preferia comprar a camisa do Livorno a uma Ferrari ou iate, eles mostraram
que o jogador de futebol não precisa ser uma figura vazia, sem opiniões
próprias e posicionamento político, eles podem e devem entender de forma
crítica o entorno que o cercam e o tipo de mundo capitalista no qual estão
inseridos. Em tempos tão confusos que atravessamos, seria ótimo que aqueles
quem possuem mais espaço nos holofotes se posicionassem em prol dos menos
favorecidos.
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