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Somos todos Tom Zé!

 


“Nosso país lançou tantos cantores e compositores maravilhosos, por que você está lançando o trabalho desse cara esquisito?" Foi isso que David Byrne, a mente por de trás dos Talking Heads, escutou quando decidiu, no final dos anos oitenta, lançar a discografia de Tom Zé nos Estados Unidos através do seu selo, a Luaka Bop. Na época, Byrne estava no Brasil gravando o documentário sobre o candomblé The House of Life, quando recebeu um telefonema de Neusa Martins, companheira de Tom Zé há muitos anos. Dias antes ela tinha reparado, durante uma entrevista do músico norte-americano, em um bilhete que dizia “Procurar Tom Zé em São Paulo”. Era a chance que ela precisava para ajudar o marido e que iria tirar Tom Zé do esquecimento e torná-lo, durante os nos anos noventa, em um ícone cult.

         Essa é uma das tantas histórias narradas no livro “Tom Zé: O último tropicalista”, lançado em 2019 na Itália pelo jornalista e pesquisador de música brasileira, Pietro Scaramuzz, e que no ano passado o Edições Sesc finalmente lançou a tradução para o português. Primeira biografia oficial do músico, o autor conta a história de vida e a obra de Tom Zé, desde o seu nascimento em 1936 na cidade de Irará, interior da Bahia, até o lançamento do álbum Sem você não A, de 2017.



         Conhecido pelo seu senso crítico e curiosidade aguçada, Tom Zé já demostrava essas características da sua personalidade, e que iriam marcar o seu trabalho no mundo das artes, desde pequeno. O livro conta que no começo dos anos cinquenta, o tio do baiano, Elísio, foi o responsável por trazer energia elétrica para o município de Irará. O tio prometeu que os novos lampiões da cidade se acenderiam às duas da tarde do sábado, porém aquilo não fazia sentido para Tom Zé. Para ele, se a corrente elétrica saísse do município de Coração de Maria, de maneira nenhuma chegaria no mesmo instante em Irará. “Ah, tudo bem! Você está zombando de mim, mas não caio nessa – desafiou o pequeno Tom Zé, que desde sempre demostrava uma curiosidade exacerbada e um notável senso crítico. Duas qualidades que o acompanharão por toda a vida”, relata Pietro.



         Outra característica do trabalho de Tom Zé é a sua presença de palco. Sempre cheio de energia e irreverente, os shows do músico, para quem já teve a oportunidade de presenciar, são sempre muito divertidos e muito disso se dá por conta do seu estilo em cima do palco. O autor conta que quando Tom Zé começou sua carreira na música, ele teve como professor o “homem da mala”. Essa figura, bem conhecida no interior do Brasil, era encontrada nas praças da cidade, durante as feiras, munido de uma mala com dezenas de frascos de vidro, cada qual com um remédio diferente. O homem da mala mostrava a sua mercadoria, divulgava seus preços, fazia promoções, ficava ofendido quando alguém pedia um desconto, enfim, montava um verdadeiro espetáculo. Tom Zé “estudava seus gestos, tomando notas numa caderneta. Interiorizou a eloquência, pensando que, se um dia subisse no palco, aqueles ensinamentos lhe seriam uteis. Além disso, para os remédios como para as músicas, o objetivo é o mesmo: vender. O que muda é maneira como se realiza o espetáculo,” escreve o escritor italiano.

         Outro ponto importante na carreira do músico que o livro aborda, e muito relevante para a história da música tupiniquim, foi o movimento tropicalista. A Tropicália, como foi batizada, foi um movimento cultural que surgiu no Brasil no final dos anos sessenta e que marcou profundamente diversas formas de expressão artística, como a música, o cinema, o teatro, a poesia e as artes plásticas. Uma das influências musicais para o movimento foi o disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, lançado em 1967 pelos Beatles. O autor conta sobre uma tarde na qual Tom Zé foi até a casa de Caetano Veloso, no centro de São Paulo, e o amigo colocou o disco para tocar. Tom Zé ainda não conhecia aquele trabalho do quarteto de Liverpool. Analisou com cuidado a capa e escutou atentamente ao álbum. Ambos, em silêncio para não perderem nada, “sabiam perfeitamente que pensavam a mesma coisa. Que a linguagem dos Beatles podia e devia servir de modelo para uma nova música brasileira”, relata o livro.




         Com um pouco mais de 300 páginas, o livro ainda fala sobre os principais discos de Tom Zé, como Todos os Olhos e Estudando o Samba, o seu período de ostracismo nos anos 1980 e sua redescoberta nos anos noventa. Além disso, a obra conta com um texto introdutório do próprio Tom Zé, com um prefácio de David Byrne e algumas fotos de apresentações do músico nas unidades do Sesc nos últimos anos. “Tom Zé: O último tropicalista” é um livro de fácil leitura, divertido, algumas vezes triste, porém que resume muito bem a carreira do filho esquecido do tropicalismo.






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