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Como “Dookie” do Green Day capturou o espírito de uma geração

 


O ano era 1993 e, notoriamente, os tubarões da indústria estavam patrulhando as águas do submundo do rock. Na esteira do sucesso e quebra de paradigma de Nevermind, grandes gravadoras se embaralhavam com seus talões de cheque em cada cena de punk rock que se espalhava pelos Estados Unidos, na esperança de agarra o próximo Nirvana e aproveitar um pouco dessa doce ação de crossover.

Mas talvez seja uma prova da modéstia de Billie Joe Armstrong que, quando os A&R das gravadoras começaram a ligar para Larry Livermore, fundador da Lookout! Records, na esperança de assinar com o Green Day, o vocalista e guitarrista dispensou eles, acreditando se tratar de trotes.

Mas eles não eram. E logo, Billie Joe e seus companheiros de banda se viram em uma posição nada comum de serem convidados para jantar com executivos de gravadoras, com seus cartões de crédito coorporativos, objetos de uma guerra de lances entre várias grandes gravadoras. Um dos executivos ainda tentou impressionar a banda com uma viagem para a Disney, entretanto, eles ainda continuaram impassíveis. De fato, apenas quando eles conheceram Rob Cavallo, conhecido na Warner Bros., que o Green Day começou a seriamente pensar na ideia de largar a Lookout! por uma grande gravadora. Um produtor que também atuava como músico de estúdio, e um amante descarado do punk rock, Rob tinha pirado com uma fita cassete com as demos do Green Day, e pressionou a gravadora para assinar com o trio da Bay Area. Da mesma forma, foi a confiança que seu fervor e temperamento inspiraram, que levou o Green Day a assinar com a Warner Bros.

A multidão punk na 924 Gilman, clube anárquico do undergound na West Berkeley que era a casa do Green Day e seus pares, não recebeu muito bem a notícia, talvez pior que a equipe da Lookout!, para quem eles venderam mais discos do que qualquer outra banda na gravadora. O salto do undergound do Green Day não foi motivado por sonhos gananciosos de sucesso de platina, no entanto. “A gente não tinha estrelas nos nossos olhos, só queríamos que os nosso discos chegassem as pessoas,” disse o baterista Tré Cool para a VH1 sobre a sua motivação em subir de patamar. Isso não impediu alguns fãs na plateia do Gilman de gritarem “vendidos” quando a notícia de que eles tinham assinado com uma grande gravadora surgiu na cena. Tré Cool respondeu se eles gostavam do The Clash e dos Ramones, e apontou que essas bandas também tinha assinado com grandes gravadoras.


Um válido argumento, mas não salvou o Green Day de ser “banido” do palco do seu amado Gilman, que por princípio, se negava a agendar bandas de grandes gravadoras. Por assinar com a Warner Bros., então, o Green Day estava queimando antigos laços, porém Billie Joe continuou decidido. “Eu não podia voltar para a cena punk, ou a gente ia ser o maior sucesso no mundo ou o maior fracasso,” ele refletiu. “A única coisa que eu podia fazer era pegar a minha bicicleta e seguir em frente”.

Rob Cavallo se encarregou de produzir o disco e agendou o grupo para o Fantasy Studios em Berkeley, um luxuoso palácio de gravação que antes tinha recebido nomes como Journey, Europe e heróis do R&B, como En Vogue. O Green Day aprovou o Fantasy primeiramente pois era perto de suas casas e eles podiam ir e vir pedalando para as sessões – eles odiavam carros. Billie Joe depois descreveu o Fantasy para a MTV como tento uma vibe “cocaína anos 70: mogno e madeira morta estranha ao redor do lugar.” Ressaltava todos os dias no estúdio a sensação de que as coisas haviam mudado para a banda, talvez irrevogavelmente. Eles tinham gastando apenas $1.900,00 nos seus dois primeiros discos no Art Of Ears. Dookie, ao contrário, iria custar para a banda a soma de $105.000,00 – ainda um valor baixo para os parâmetros das grandes gravadoras, mas muito dinheiro para um grupo que estava morando em um armazém sujo acima de um bordel no lado mais perigoso da cidade.

A banda não desperdiçou seu orçamento nos famosos excessos do rock. Seu produtor definiu um cronograma rígido, com a banda chegando ao meio dia e raramente saindo antes da meia noite. Eles estavam trabalhando duro; crucialmente, no entanto, eles estavam amando. “Era como ir para o colégio todos os dias,” disse para a VH1 o baixista Mike Dirnt, enquanto Rob e a banda cunhavam o que se tornaria o som característico do Green Day, pegando o pop-punk amável e energizado de seus discos anteriores e aumentando o volume, aparando as arestas e aumentando os vocais até que eles estivessem entregando bombas melódicas de fogo. Eles trabalhavam rápido; muito bem ensaiados por conta das turnês, o grupo tocava com um foco nascido em parte pelo desejo de agarrar essa oportunidade da melhor forma possível e silenciar os invejosos da cena punk da Bay Area que previram que eles iam falhar nas “grandes ligas”. O álbum foi finalizado em dois meses, com Billie Joe fazendo os vocais de todas as músicas em apenas dois dias.  



O resultado foi triunfante. Rob merece credito, por ter capturado no maior grau de fidelidade que eles já tinham experimentado (compare a versão mais dinâmica e musculosa em Dookie da música “Welcome To Paradise” com a gravação de 1991 que saiu em Kerplunk). Mas o sucesso de Dookie está nas músicas e sua execução. Mais do que qualquer de seus contemporâneos na Bay Area, o som do Green Day baseou-se fortemente em uma linhagem clássica do punk rock e suas influências, e alguém também pode diferenciar com o ímpeto descontrolado do The Clash, a energia cômica dos Sex Pistols e até mesmo o poder e o volume do The Who. Uma vez que eles atingiram o sucesso, nenhum crítico cultural deixaria de fazer referência ao uivo malcriado de Billie Joe – mas o que importava em Dookie é como ele brilhantemente se dobra para a música, andando numa tensão perfeita entre atitude e fidelidade pela melodia, aquele coquetel improvável de pop e punk operando em perfeita sincronicidade turbulenta.

Esses são hinos – você poderia dizer que em melodias tão massivas e viciantes, até o seu carteiro não poderia parar de assobiar elas. Elas também são hinos em como perfeitamente eles capturam a mentalidade sem objetivo de uma geração (uma mentalidade que gerações subsequentes conseguiram acessar sem esforço). Billie Joe sempre foi um letrista astuto, sutil e espirituoso para desdenhar os slogans e fanfarronices do punk rock em prol das histórias contadas da sua própria perspectiva. As músicas em Dookie mostram ele em seu ápice, entretanto, ensaiando o descontentamento casual do adolescente punk disfuncional de 20 e poucos anos.

Suas músicas são boletins dos squats sujos que ele compartilhou com Tré e Mike, músicas que fizeram com que ele se distraísse do seu transtorno de ansiedade que ele vinha sofrendo desde que seus pais tinham se separado anos antes e com as drogas, o rock and roll e emoções baratas, ele usava como tratamento, sendo a masturbação a mais barata delas. O vocalista e guitarrista agarrou esse tópico com mais paixão do qualquer outro punk tinha reunido desde a música legendária sobre masturbação do The Vapors “Turning Japanese”, transformando-o em polpa em “Longview”, um conto sobre tédio e perturbação, construída em torno de uma linha de baixo de Mike enquanto ele viajava em ácido, que vê o vocalista escapando do cotidiano mundano e se entregando ao combate corpo-a-corpo.



Havia pouco glamour no mundo pintado pelo Green Day – “Longview” tinha o seu líder grudado em um “banco de velcro” e cheirando a merda, enquanto o clipe, gravado nas escavações sujas do grupo na época, revelava em detalhes o sofá sujo, a mesinha de centro cheia de lixo, o banheiro nojento, enquanto depois a banda lembraria como a câmera havia capturado suas espinhas. Mas Dookie – nomeado em tributo aos episódios de diarreia que o grupo tinha experimentado na estrada, por conta da dieta pobre deles – havia profundidade além da gozação habitual.

O relacionamento de Billie Joe Armstrong com uma ex-namorada feminista e idealista, Amanda, inspirou “She”, na qual ele anseia em aliviar as preocupações dela, e a românica “Sassafrass Roots”, em que ele quer que ela vá com calma e perca um tempo com ele (ela largou ele depois do disco e a lenda diz que ela voou para o Equador para uma missão filantrópica). “When I Come Around” é um relato modesto das próprias deficiências emocionais do frontman, motivado por uma separação temporária de Adrienne, a mulher com quem ele se casaria em 1994. “Coming Clean”, no entanto, era uma brava e inovadora exploração da bissexualidade de Billie Joe, um assunto que ele discutiu abertamente depois que o disco atingiu sucesso, sem medo de qualquer represaria do novo público do Green Day (logo em seguida eles iriam levar para a estrada o grupo queer punk Pansy Division).

E aí veio “Basket Case”, o maior hit do álbum, inspirado nos ataques de pânico do frontman, mas explorando ansiedades maiores, como a solidão e a paranoia da vida moderna. Temas pesados, talvez, mas Billie Joe abordou o assunto com inteligência e vigor, e os hinos do Green Day ofereciam um sentimento de catarse, mas também um certo divertimento. Ele não era o primeiro compositor a ser proclamado o “poeta da Geração X” – esses eram os tempos de Kurt Cobain e Eddie Vedder, moradores de Seattle dando voz para uma ansiedade e sensação de peso aparentemente universais. Mas Billie Joe não sentia nenhum parentesco com o grunge, considerando sua rotina de rock e suas pretensões alienantes. Suas músicas eram engraçadas, vulgares, tocantes e tocadas no ritmo de um leopardo.

Na esteira do suicídio de Kurt Cobain – que ocorreu alguns meses depois do lançamento de Dookie – Billie Joe apresentou um sabor mais animado para o herói do punk rock em uma era repentinamente desoladora. Nos vídeo clipes, que rapidamente viraram queridinhos na programação da MTV, ele lembrava um garoto travesso com uma maquiagem punk, inquieto em sua postura com a guitarra na altura dos joelhos, olhos enormes como um Anime e a boca presa entre um sorriso de escárnio e um rosnar – a pulsação punk pop perfeita.



No verão de 1994, o Green Day se juntou ao line-up do Lollapalooza, ao lado de Smashing Pumpkins, Beastie Boys e muitos outros – algo muito importante na cena do rock alternativo, ajudando bandas do underground a cruzarem para o mainstream. O Green Day iria provar ser a revelação daquela turnê – um passo importante na ascensão do grupo para o estrelato.

Apesar de apenas 9 mil copias terem sido prensadas na semana do lançamento, as vendas de Dookie começaram a aumentar, excedendo todas as expectativas. O sucesso comercial do disco foi a onda que levantou todas as outras bandas da cena, Rancid e The Offspring, e até mesmo grupos com certo nome, como o Bad Religion. Mas talvez o momento chave na história de sucesso do Green Day foi a aparição do grupo no festival de Woodstock, durante o verão no qual Dookie foi lançado.

Em celebração ao aniversário de número 25 do festival “paz e amor” de 1969, Billie Joe entrou no palco gritando, “O que é essa merda de amor livre hippie?” Três músicas depois, no entanto, o som do Green Day tinha gerado um caótico mosh pit no qual os presentes tinham prazer em jogar lama um no outro. Mike Dirnt sarcasticamente observou, “Yeah, a gente sugeriu que vocês jogassem lama, isso é divertido,” no qual o público que estava perto do palco respondeu jogando lama na banda. Assim, uma luta de lama começou entre o púlbico e a banda deixou o palco parecendo um curral, cena testemunhada por uma audiência de milhões de telespectadores em casa, encapsulando o irreverente, alegre, anárquico ataque dessa brilhante banda e selando sua reputação como o grande evento punk de sua geração.

Enquanto eles deixavam o palco com lama da cabeça aos pés, eles cambalearam como heróis e superestrelas incipientes. Dookie provou que o Green Day poderia se tornar uma banda com milhares de discos vendidos sem se vender ou entorpecer seu lado arrogante. Isso estava acontecendo nos termos deles – e as 20 milhões de cópias que o disco vendeu nos anos seguintes provou que os instintos de Billie Joe e companhia estavam certos.

 

O texto acima é uma tradução livre da matéria publicada no site da Kerrang! em 1º de fevereiro de 2021. Link para o original: https://www.kerrang.com/features/how-green-days-dookie-captured-the-spirit-of-a-generation/

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