Pular para o conteúdo principal

Já leu? #01: Ninguém pode com Nara Leão - Tom Cardoso

 


No dia 22 de maio de 1966, o jornal “Diário de Notícias” publicou na página 3 uma matéria com o seguinte título: “Nara é de opinião: esse Exército não vale nada”. Com 24 anos na época, Nara Leão não era qualquer pessoa. Uma das expoentes da bossa nova, a cantora tinha brigado com meio mundo para gravar sambas de compositores das favelas cariocas em seu disco de estreia. Na entrevista, em meio ao regime militar, Nara não poupou os militares: os “generais podiam entender de canhão e de metralhadora, mas não pescavam nada de política” e ainda pedia a extinção do Exército. Em seu novo livro, “Ninguém pode com Nara Leão”, o jornalista Tom Cardoso conta essa e muitas outras histórias a respeito de uma das principais vozes do nosso país.

Nara Leão nasceu em 1942 e nos anos cinquenta se tornou um dos principais nomes da bossa nova. O gênero, que iria se tornar um patrimônio cultural, nasceu no apartamento que Nara morava com os pais, em Copacabana. O livro conta que o pai dela, o advogado Jairo Leão, pouco ligado em regras, durante esse período estabeleceu apenas uma com relação as reuniões que a filha fazia em casa. Toda quinta-feira, ela e os amigos, teriam que arrumar outro lugar para tocar. Esse era o dia na semana que o pai recebia alguns amigos, entre eles Millôr Fernandes, Paulo Francis e Samuel Wainer, para jogar pôquer.



Porém, o que chama mais atenção no livro de Tom a respeito desse período de gestação da bossa nova, é o modo como Nara era tratada pela turma que se reunia no apartamento da Avenida Atlântica. Dotada de uma timidez enorme, ela servia muitas vezes como um tipo de computador, pois conhecia de cor todas as letras, melodias e acordes. Quando tentava puxar uma roda de violão, quase sempre era aconselhada a não ir muito longe, ouvindo alguns “elogios” como “fanhosa” e “desafinada”. “Acho mesmo que só permaneci no grupo por causa da minha casa. Ninguém acreditava em mim, mas ninguém me escutava cantando”, contou Nara, anos depois, para o Museu da Imagem e do Som.

Longe dos barquinhos e dos violões da bossa nova, Nara durante toda a sua carreira seria associada também a música de protesto. Isso nasce a partir do segundo disco dela e do espetáculo musical que viria em seguida.



O livro conta que, desde o seu primeiro LP, a cantora começou a se aproximar dos sambistas da Mangueira e dos outros morros do Rio de Janeiro. Além disso, ela estava cada vez mais envolvida com o pessoal do Cinema Novo. Dessa aproximação, nasceu seu segundo trabalho, Opinião de Nara, um verdadeiro ataque ao regime militar – ele foi lançado sete meses após o Golpe de 1964 – e que entendia muito bem o contexto político e social que estava inserido. Tom Cardoso conta que foi o cineasta Glauber Rocha que “sugeriu que a primeira faixa do disco, ‘Opinião’, composto por Zé Kéti, tivesse um repicar de bateria lembrando que eram tempos de ditadura militar.”

Com o sucesso do álbum, nasceu um dos espetáculos musicais mais importantes da história do Brasil, o Opinião. Protagonizado pela própria Nara, o musical contava ainda com o sambista Zé Kéti e com o cantor sertanejo João do Vale. Dirigido por Augusto Boal, a estreia ocorreu no dia 11 de dezembro de 1964 no Teatro de Arena, localizado em um shopping center de Copacabana. “Quando a cantora entrou no palco com a camisa vermelha de corte masculino, calça jeans e tênis conga, denunciando as mazelas e a falta de liberdade do povo brasileiro, não foi só a plateia que se espantou com a força e a ousadia do espetáculo”, conta Tom. 



Extremamente engajado politicamente, o espetáculo se tornou um sucesso e uma das atrações mais concorridas do Rio de Janeiro. Porém nem todo mundo gostou, principalmente o regime militar. Um que teve que dar explicações para a ditadura foi Arnon de Mello, pai do ex-presidente da república Fernando Collor. O livro conta que o senador teve que explicar para os generais e colegas de partido (Arena) como ele tinha alugado o teatro para artistas que estavam insultando o regime e a família brasileira. Outra reação contada por Tom, e que muito bem poderia ser confundida com manifestações que ocorrem nos dias de hoje, foi que “na manhã do dia 14 de janeiro de 1965, o teatro amanheceu pichado com desenhos de foice e martelo e slogans anticomunistas.”



O jornalista também fala no livro sobre as importantes parcerias musicais que Nara teve ao longo de sua carreira e como ela tinha uma aptidão para reconhecer grandes talentos. Chico Buarque foi um deles. Em seu disco de 1966, Nara Pede Passagem, recheado de músicas de grandes compositores da nossa música, o trabalho também trazia algumas novidades, como “Amo tanto” de Jards Macalé, “Recado” de Paulinho da Viola e três músicas de Chico. “Nara esteve com Chico pela primeira vez no apartamento de Copacabana, nos primeiros meses de 1965. Em pânico, ele mal abriu a boca. Conseguiu só explicar que era estudante de arquitetura em São Paulo, mas queria mesmo fazer música – e tinha algumas para mostrar. Pegou o violão e cantou, enquanto Nara registrava no gravador, também sem ter muito o que dizer, deslumbrada com o que ouvia,” conta Tom a respeito do primeiro encontro entre os dois.

Além disso, o livro aborda a turbulenta relação de Nara com Elis Regina, a vida pessoal da cantora, o tumor no cérebro que viria tirar a sua vida em 1989 aos 47 anos, entre outros assuntos. “Ninguém pode com Nara Leão” é uma obra que faz jus a um dos principais nomes da música brasileira e apresenta a obra de Nara Leão para outras gerações.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Muito Sexo, muitas drogas e muito, mas muito Rock 'n' Roll na Netflix

Em maio de 2001 foi lançada uma das melhores e mais aguardadas autobiografias sobre uma banda de rock. Em mais de 400 páginas, “The Dirt: Confessions of the World's Most Notorious Rock Band” conta, através da visão de Tommy Lee, Mick Mars, Vince Neil e Nikki Sixx, a história de uma das bandas mais insanas dos anos oitenta, o Mötley Crüe. O sexo, as drogas, as brigas, as prisões, o sucesso, a decadência, tudo está nessa obra que é extremamente bem-acabada graficamente.     O papo para tornar todas essas páginas em filme começou em 2006, quando a Paramount e a MTV adquiriram os direitos para a adaptação nas telonas. Porém as coisas enfriaram e, com o fim da banda (será?!) em 2015, os rumores de que a história da banda poderia de uma vez por todas ser lançada voltou à tona. Com o sucesso no ano passado de “Bohemian Rhapsody”, o filme que conta a vida do Queen, a plataforma digital de streaming de filmes e séries Netflix lançou no dia 22 de março “The Dirt”, dirigido por

Como Henry Rollins entrou para o Black Flag

  O trecho abaixo foi retirado do livro “Get in the Van” escrito por Henry Rollins e lançado em 1994. Como o livro não tem uma tradução para o português, as linhas abaixo foram traduzidas de forma livre por mim. Espero que gostem.   Primavera (1981): Eu estava vivendo em um apartamento em Arlington, Virginia, bem perto de Washington, DC. Eu trabalhava numa sorveteria e caminhava até o meu trabalho todos os dias. Eu era o gerente da loja e trabalhava lá entre 40 e 60 horas por semana fazendo os depósitos, contratando, despedindo, fazendo inventário, servindo sorvete, etc. Eu estava numa banda naquela época. Nada muito musical. Quatro de nós com um equipamento de merda, mas a gente se divertia tocando e ensaiando. Um cara chamado Mitch Parker deu para mim e para o meu amigo Ian MacKaye uma cópia do EP do Black Flag Nervous Breakdown . Nós tocámos ele o tempo todo. Era pesado. A arte da capa dizia tudo. Um cara com as costas para a parede erguendo os punhos. De frente para ele ou

Dicas de quarentena #147: Lô Borges tocando disco do tênis na íntegra!

  Lô Borges foi um dos principais nomes que surgiram por conta do disco Clube da Esquina de 1972. Seu autointitulado álbum de estreia, mais conhecido como “disco de tênis”, é considerado por muitos críticos e fãs com um dos grandes álbuns da história da nossa música. Em 2018, Lô reuniu uma banda de primeira para recriar esse trabalho ao vivo. Abaixo você confere o show que rolou no icônico Circo Voador e que gerou o DVD “Tênis + Clube - Ao Vivo no Circo Voador":